segunda-feira, 11 de julho de 2011

10 de julho de 2011

Ontem fiquei sabendo que minha avó materna, de 94 anos, havia falecido na noite anterior. Peguei a família e fui ao seu velório em Petrópolis. Lá chegando, fitei os olhos marejados e cansados de minha mãe e de minha tia, que durante todo o tempo que se passou entre a primeira isquemia e o seu óbito, estiveram vigilantes, revezando-se para proporcionar-lhe os melhores cuidados e fazer suas últimas vontades.


Sabe, minha avó Alice foi um exemplo em diversos aspectos. Com seus acertos e erros, com sua firmeza, sua vontade de viver, ela merece ser lembrada e copiada. Começou a trabalhar muito jovem. De família humilde, não teve grandes estudos, mas aprendeu desde nova a fazer seu dinheiro render. Meu avô, funcionário de carreira do Banco do Brasil, morreu quando eu era bem criancinha e ela, viúva, foi comprando dois apartamentos para si, um em Cabo Frio, para passar férias, e, posteriormente, outro em Copacabana, o Bairro dos Idosos Cariocas, para onde vinha no inverno, quando Petrópolis esfriava muito, jogar biriba e passear com as amigas.


Independente, inteligente, dona do seu nariz, viajou enquanto pode para onde quis. Conforme foi ficando mais idosa, seu medo de ter algum piripaque longe de casa a impediu de continuar. O avanço dos anos também lhe trouxe alguns problemas, como a perda parcial da visão e a piora na circulação dos membros inferiores. Houve um tempo em que ela perdeu o movimento das pernas e ficou numa cadeira de rodas. Mas sua determinação em voltar a andar foi mais forte – e vovó andou quase até o fim da vida com a ajuda da bengala.

Vovó era de uma lucidez impressionante. Uma das coisas que sempre notei foi seu gosto por palavras cruzadas, sudoku e baralho. Não tenho certeza se realmente funciona, mas ela sempre me disse que o cérebro precisa de exercício. E no caso dela deu muito certo! Lembrarei para sempre dos seus bolinhos de banana e de chuva e também dos suspiros que fazia, especialmente quando tive hepatite, aos oito anos.

Minha avó também segurou as pontas lá de casa enquanto minha mãe teve que cuidar do meu irmão doente no exterior. Ficavam ela e minha irmã assistindo a Hebe Camargo e Silvio Santos na TV – além de todas as novelas, claro. Aliás, só conheci os programas do SBT por causa dela!
Vovó não sabia nadar, mas adorava uma praia. Quantas vezes fui com ela para Cabo Frio na infância e lembro de ficarmos boiando no raso quando o mar estava calmo... E também não me esqueço do dia em que uma onda imensa derrubou-a na beirinha da areia! Só não sei se foi na praia da Barra ou Copa, mas que susto deu na “veia” e em todos nós!

Mais tarde, vovó começou a fazer uma linda colcha de crochê para mim, mas a piora da visão a fez parar no meio. Não satisfeita pelo presente não entregue, pagou uma senhora para terminar, anos depois, e me deu.


Sempre me ofertou conselhos sobre fazer economias e sobre relações amorosas. Vovó era feminista sem ser militante e uma admiradora do meu trabalho. Dizia que o homem tinha que gostar mais da mulher que o inverso. Praticamente uma sábia, minha avó.

Vovó reclamava da terceira idade, das limitações e, especialmente, da gradativa perda da autonomia. Ainda mais ela, tão auto-suficiente... Ano passado ela teve uma isquemia às vésperas dos seus 93 anos. O resultado foi a paralisia parcial dos movimentos do lado direito, piora acentuada da visão e da memória. Dali por diante ficou completamente dependente e um pouco mais impaciente com a vida. Nos raros momentos de plena lucidez, reclamava que estava desgostosa de continuar vivendo daquela maneira, sem ter muito que fazer, dependendo de tudo e de todos. Algumas de suas poucas diversões se resumiam a ouvir TV e passar o tempo apertando aquele plástico de bolinhas com a mão esquerda.


Neste um ano e pouco de vida, teve o melhor tratamento e a atenção desdobrada da minha mãe e minha tia. Equipes de enfermeiras e fisioterapeutas se revezavam nos seus cuidados. Vovó Alice estava sempre asseada, penteada e cheirosa, com muito respeito, carinho e dignidade. E nem por isso deixou de sofrer alguns revezes. Minha mãe relatou que, certa vez, uma técnica de enfermagem de pouca idade foi contratada, e que quando foi ao quarto para vê-la, vovó estava com um bicão. Mamãe perguntou-lhe o que havia acontecido e ela, receosa, falou que a moça tinha sido grosseira. Mamãe pediu-lhe que relatasse tudo na frente da profissional e depois indagou à jovem se aquilo era verdade. Com a confirmação, mamãe dispensou-a e, com toda calma, aconselhou-a a desenvolver a paciência e um profundo respeito ao próximo antes de escolher trabalhar com pessoas idosas.


Fico pensando nas idosas e idosos que ficam a mercê da impaciência e do desrespeito alheio, daqueles que não têm condições de arcar com essas despesas e das pessoas que têm, mas não conseguem acompanhar de perto os cuidados prestados aos seus idosos, por conta dos afazeres do dia-a-dia. Fico pensando em todos esses vulneráveis, dependentes, que são vítimas de toda sorte de violência, abandono, negligência. Penso todos os dias em tudo o que fazemos, podemos e devemos fazer cada vez mais para ajudar não só a esses idosos, mas também às suas famílias para poderem proporcionar-lhes uma vida digna e prazerosa até o fim.


Digo que minha avó é um exemplo, pois não deixou despesas para ninguém. Todo seu tratamento e até mesmo seu funeral foram custeados com o dinheiro de sua pensão e economias. Desde muito cedo ela entendeu a importância de usufruir da vida sem ser perdulária, de economizar e investir no futuro. Iguais a ela, poucas pessoas conheço.


Meu trabalho também é fazer com que as pessoas se preparem para a velhice, para viver esses anos a mais que a medicina e a tecnologia nos deram com saúde, paz e qualidade de vida. Sem planejamento, o resultado pode ser muito ruim.


Ontem apagou-se a chama da vida da minha avó querida, que descansou. E se fortaleceu no meu coração a chama da esperança de poder modificar o mundo, dentro das minhas competências e com a ajuda do nosso Prefeito, dos amigos e parceiros, para fazer com que o Rio seja casa vez mais uma Cidade Amiga dos seus Idosos, a quem dedico todo meu trabalho, com muito carinho e amor. Em homenagem aos avós Heitor e Alice, que se foram, e aos avós Roberto e Neusa, que completaram recentemente 60 anos de casados, a quem dedico um beijo especial.

Participe do I Concurso de Contos para Idosos da SESQV